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Um Filler da minha vida - versão 2025
Dizem que na vida de todo homem há
capítulos que pouco ou nada acrescentam à narrativa principal — momentos que se
entremeiam entre as páginas do destino como os episódios de encher tempo nos
romances de folhetim. Pois bem, este conto é um desses capítulos. Um verdadeiro
filler — como diriam os jovens de agora — do grande volume da minha
própria existência.
Tudo começou quando o bom Zé, homem
de coração vasto e semblante sereno, aceitou o meu convite para passar o Natal
com a nossa família, os Vilaça. Ah, como minha mãe se rejubilou! Não houve em
toda a freguesia uma alma mais diligente naquela tarde: correu, arrumou, poliu
e — como por milagre que só as mesas da IKEA conhecem — conseguiu espaço para
mais um prato naquela mesa já sobrecarregada de amor e travessas.
O Zé, que Deus o guarde, era desses
espíritos que parecem feitos de luz e bondade. Um pouco roliço, com os cabelos
escuros já pincelados de branco e os olhos sempre vivos atrás dos óculos,
vestia-se invariavelmente da mesma forma — camisa simples e calças de ganga.
Havia nele uma humildade que conquistava até o mais sisudo dos corações.
Quando caminhava pelas ruas de
Oliveira do Bairro, todos lhe acenavam com afeição:
— Como vai, bom José? —
perguntavam. — Quando terei o prazer da sua visita?
E ele, com o sorriso de quem
deseja o bem do mundo inteiro, respondia:
— Talvez um dia, meu amigo.
Até lá, tenha um bom dia!
As crianças o adoravam, os mendigos o
bendiziam, e até os cães pareciam abanar o rabo quando ele passava.
E assim chegou, como chega sempre com
seu misto de júbilo e melancolia, a Véspera de Natal. A casa estava em
alvoroço. O cheiro de bacalhau e rabanadas misturava-se ao riso das conversas e
ao estalar dos lenhos na lareira. Minha mãe, qual general em campo de batalha,
não permitia incursões à cozinha antes da hora da ceia. “Nem um biscoito!”,
bradava.
Então, a campainha soou, e a voz
de um anjo ecoou:
— Feliz Natal, família Vilaça!
Que Deus os abençoe!
Era o Zé, corado pelo frio e pela
pressa. Entrou com aquele ar de quem carrega o sol no coração.
— Quero ser útil nesta noite
— disse ele. — Fazer algo que valha aos olhos de Deus.
Meu pai, homem de espírito
jovial, aplaudiu o gesto; minha mãe sorriu, e minha irmã correu a pôr mais um
talher. Até meu irmão Paulo — envolto num cachecol sentimental e num discurso
vegan — foi silenciado por um simples “É Natal”, dito com doçura pela Marta.
A casa se encheu de gente, música
e risadas. Quando os últimos Vilaça chegaram, exclamaram com entusiasmo:
— Já se sente o cheiro do
bacalhau! Ah, o bom e velho bacalhau de Natal!
Mais tarde, levei o Zé a dar uma
volta no quarteirão. O vento cortava como faca, mas ele, sempre brincalhão,
disse:
— O problema é que não sou
chinês para me habituar a este frio!
No caminho, uma pobre mulher nos
abordou, pedindo esmola com voz trêmula. Eu hesitei, mas o Zé, sem vacilar,
tirou da carteira uma nota de dez euros e disse com sincera ternura:
— Pegue, boa senhora.
Aleluia nos céus, paz na terra aos homens de boa vontade!
A mulher agradeceu, e com aquele
pequeno ato de generosidade, o ar pareceu mais leve, e o frio menos cortante.
Ao regressarmos, o nevoeiro cobria
a cidade como véu de mistério. De repente, um velho lampião pareceu mover-se
sozinho, guiando-nos pelas sombras até à porta de casa. O Zé, maravilhado,
fez-lhe uma vênia. Eu, por minha vez, não sabia se era magia ou apenas reflexo
do vinho quente que bebera mais cedo.
Dentro de casa, tudo era calor e riso.
O Zé vestiu o seu casaco de cerimônia e exibiu com orgulho uma gravata de Darth
Vader — presente dos sobrinhos, explicou ele, com um riso meio
envergonhado.
Quando descemos para a ceia, a mesa
era um espetáculo: o bacalhau fumegante, as batatas douradas, o aroma de carne
assada e até o prato vegan de Paulo — ninguém se lembrou mais da dieta, graças
a Deus.
Zé ergueu o copo e pediu um instante
de silêncio.
— Quero agradecer aos Vilaça
por me acolherem neste lar tão abençoado — disse ele. — E pedir que Deus
abençoe o nosso amigo Hugo, que passa por provações.
Rezamos, brindamos, e comemos até
tarde. A alegria, essa grande companheira do Natal, reinava soberana.
Quando a noite se esgotou, minha
mãe insistiu para que o Zé ficasse. E ele, sem jeito, aceitou.
Na manhã seguinte, o sol tingia as
janelas, e os sinos da igreja entoavam o cântico do nascimento.
Zé abriu os olhos, correu à
janela e perguntou a um rapaz lá fora:
— Em que dia estamos, meu
jovem?
— Ora essa, senhor! É Natal! —
respondeu o moço, sorrindo.
Zé riu, batendo palmas.
— É Natal! É Natal, meus amigos!
Correu pela casa, despertando todos
com sua alegria contagiante. E, reunidos ao redor da árvore, entre papéis
coloridos e gargalhadas, ele disse com voz terna:
— Vamos repetir as palavras do
pequeno Tim, do Conto de Natal de Dickens.
E nós, sem hesitar, repetimos com
ele:
— Que Deus abençoe a cada um de
nós.
E naquele instante, creio que até os
anjos sorriram.
Fim.
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