Mais um capitulo do conto "Siddartha Gautama".

 

         Era um fim de semana esperado por todos. Quim Zé, com sua postura de estudante universitário, cabelos despenteados que lembravam os de André, e uma barba fina no estilo mosqueteiro, chegou em casa exalando uma alegria contagiante. Os óculos redondos sobre o nariz emprestavam-lhe um ar sábio, quase excêntrico. Mal cruzou a porta, correu para abraçar Zé com um entusiasmo que quase o derrubou. O reencontro era cheio de energia. Ao virar-se para André, abraçou-o também, mas de forma mais contida, uma diferença sutil que não passou despercebida.

          A conversa à mesa foi cheia de risos. Quim Zé narrava seus primeiros dias na universidade, as noites na casa de Hugo e até os planos para visitar a avó no Porto no dia seguinte. A ideia de rever primos de Penafiel parecia animá-lo.

        — Vou ter que te levar lá. — disse Zé, disposto como sempre.

       Quim Zé, com um sorriso que refletia tanto expectativa quanto cautela, lançou a pergunta:
       — Pai, eu e o tio Hugo já marcamos as aulas de condução. Podes me ensinar a dirigir?

       Zé, orgulhoso, respondeu sem hesitar:
        — Claro que sim.

        André observava tudo em silêncio, dividido entre a felicidade pelo filho e a dor latente de perceber a distância emocional que os separava.     Essa proximidade de Quim Zé com Zé, quase paternal, apertava-lhe o coração.

         Quando Quim Zé perguntou sobre o templo budista em Aveiro, André respondeu calmamente:
        — Vai bem, com muitos turistas.

          — Tenho pena de não estar lá nas tardes. Posso ir amanhã ver o templo? Tenho saudades. — disse Quim Zé.

         André, quase tocado pela nostalgia do filho, assentiu:
          — Claro que sim, Quim Zé.

          O momento foi interrompido por uma brincadeira de Zé:
         — E quanto às mulheres? Alguma por lá?

         Dona Celeste, rindo, interveio:
           — Zé, que pergunta mais tola.

          Com uma piscadela espirituosa, Quim Zé respondeu:
        — Sou como o Simão Botelho, só tenho olhos para a minha Teresinha.

        Os risos preencheram o ambiente, mas a alegria da sala parecia não alcançar André. Mais tarde, recolheu-se ao quarto, enquanto Quim      Zé e Zé ainda conversavam. E foi ali, em seu isolamento, que André tomou uma decisão definitiva.

        Nos dias que se seguiram, cumpriu meticulosamente as tarefas necessárias: documentos, passagens, cartas. Ao amanhecer de sua partida, agradeceu em oração a Buda por mais um dia de vida. Vestiu-se com cuidado, o hábito monástico cuidadosamente ajustado. Antes de sair, deixou um envelope sobre a mesinha de cabeceira de Zé e saiu em silêncio, fechando a porta atrás de si.

         Zé acordou atrasado, como de costume, mas estranhou o vazio ao não encontrar André. Chamou por ele pela casa, mas nem Dona Celeste tinha pistas de onde poderia estar. Ao tropeçar na mesinha do quarto, derrubou o envelope. O nome dele estava escrito com a caligrafia firme de André. Zé sentiu o coração disparar. Sentou-se e, com dedos trêmulos, começou a ler.

 

*"Caríssimo Zé,
       Desde que retornei do Templo de Nara, tenho vivido em constante sofrimento. Sinto falta de não ver meu filho crescer, sofro pela perda do meu grande amor no acidente e pela dificuldade em reconhecer amigos de longa data.

        Quim Zé não me vê como pai da forma que eu desejava, mas fico profundamente grato por ter você como amigo e por ser o pai que ele tanto adora e admira. Obrigado por tudo o que fez por ele, meu amigo.     Não sei se em outra vida terei a oportunidade de lhe agradecer devidamente.

        Estou retornando ao Japão, ao Templo de Nara, onde sinto falta dos meus amigos monges e da vida dentro do templo. Peço desculpas por não ter lhe dito nada ontem e por não ter me despedido de você. Tenho receio de que Hugo fique chateado quando souber da minha partida.

         Peço desculpas novamente. Encontre outro mestre budista para o meu templo em Aveiro, e deixe claro que o templo pertence a Quim Zé, que ele tanto ama.

         Por favor, diga a Quim Zé que seu pai o ama profundamente e que talvez um dia possamos nos encontrar novamente.

Um abraço caloroso,
André Vilaça"*

 

        Lágrimas escaparam dos olhos de Zé enquanto ele lia. Antes que pudesse reagir, o telefone tocou. Era Quim Zé. Eles falaram sobre as cartas e sobre o vazio que já começava a tomar forma.

      Enquanto isso, do outro lado do mundo, os monges do Templo de Nara ocupavam-se de suas rotinas diárias quando um deles avistou alguém ao longe.
       — Alguém está chegando?
       — Que Buda seja louvado, é André-san.

       André caminhava pelas ruas que levavam ao templo, sua postura serena em contraste com a tempestade de emoções que deixara para trás. Diante do monge líder, fez uma profunda reverência:
       — Eu refugiei-me em Buda.

        O monge líder retribuiu o gesto, curioso:
       — Eu refugiei-me em Buda. O que você está fazendo aqui, André-san?

        — Vim para ficar para sempre. — respondeu André, com firmeza.

O líder sorriu e acolheu-o de braços abertos:
       — Seja bem-vindo de volta.

        Os monges reuniram-se para recepcioná-lo, e André sentiu, talvez pela primeira vez em muito tempo, uma paz genuína ao cruzar os portões do templo. Estava em casa.




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