Mais um capitulo do conto "Siddartha Gautama".
O mosteiro de Nara era um santuário de
calma, um lugar onde o tempo parecia mover-se em ritmo próprio. Ali, André,
ainda em recuperação, passava seus dias entre reflexões e ensinamentos
budistas. Uma tarde, enquanto os ventos suaves balançavam as árvores, uma
melodia diferente chegou até ele. Não era japonesa, tampouco conhecida. Movido
pela curiosidade, ele mancou até a origem do som e deparou-se com uma bela
mulher indiana, dedilhando uma viola e cantando com o coração em uma língua que
ele não compreendia.
Seu mestre, Mitohiro, percebeu a
inquietação de André e aproximou-se.
— Que língua é esta tão bonita
que desconheço, mestre? — perguntou André, intrigado.
Mitohiro sorriu.
— É uma língua antiga, do tempo
de Buda.
André inclinou-se, como que para
escutar melhor.
— E o que ela canta?
O mestre observou a mulher por um
instante antes de responder:
— Ela canta a saudade da sua
terra. Uma terra que teve de deixar
para imigrar para o Japão. Fala do desejo de voltar, de reencontrar a
família que deixou para trás.
Essas palavras despertaram em André
uma dor familiar. Ele pensou em sua própria família e nos amigos que havia
perdido contato após o acidente que mudara sua vida. Mitohiro, notando a
tristeza no olhar de André, disse com serenidade:
— Não te deixes consumir pela
tristeza. Ouve a música. Deixa que ela te preencha como um presente de Buda.
André assentiu lentamente e fechou os
olhos, deixando-se levar pela melodia.
De volta ao presente, André estava
em seu quarto na casa de Zé, quando este bateu à porta.
— Vais descer para o Ano
Novo? — perguntou Zé.
André fez sinal para que ele
entrasse.
— Senta-te aqui. Vamos
conversar um pouco antes.
Zé sentou-se ao lado de André,
curioso.
— O que me contas?
André sorriu, recordando um
momento especial.
— Lembro-me de um dia no
mosteiro de Nara. Estávamos sentados no chão, e um mestre muito respeitado por
todos sentou-se ao nosso lado. Ele nos contou um conto que ouviu sobre Buda e
seus discípulos.
Zé acomodou-se para ouvir, e André
começou:
— Um sacerdote hindu estava
prestes a sacrificar uma cabra em nome dos deuses. Quando levantou o
instrumento para o sacrifício, a cabra começou a chorar. Intrigado, ele
perguntou: "Por que estás a chorar?"
Zé franziu o cenho.
— E o que respondeu a cabra?
— A cabra disse: "Eu choro
porque, em minha vida anterior, fui um sacerdote que sacrificava cabras em nome
dos deuses."
André fez uma pausa antes de
continuar.
— O mestre perguntou-nos o
que Buda ensinava com aquele conto. Um jovem monge respondeu: "Que todos
reencarnamos e que nossos atos determinam as consequências em vidas
futuras."
Zé assentiu, refletindo
sobre a lição.
— Faz sentido.
André sorriu, mas seu olhar ficou
sombrio.
— Zé, às vezes fico frustrado.
Ontem entrei numa loja onde uma mulher tinha uma estátua de um deus chinês com
as costas viradas para a porta. Ela achava que era algo budista, mas era um
ritual taoísta. Parece que
só se interessam pela minha religião quando querem pedir dinheiro ou sorte.
Poucos querem aprender o que Buda realmente veio ensinar à humanidade.
Zé colocou a mão sobre o ombro de
André, em um gesto solidário.
— Eu refugio-me em Buda.
André, tocado pelo respeito de Zé,
repetiu:
— Eu refugio-me em Buda.
Zé levantou-se e sorriu.
— Agora, vamos descer e
comemorar o teu primeiro Ano Novo connosco.
André concordou, e juntos desceram
para encontrar a família. Após a meia-noite, voltaram para os quartos, onde
Hugo e Quim Zé já dormiam profundamente. Zé, percebendo o olhar carinhoso de
André para o filho, chamou-o:
— Anda, vamos para o outro
quarto.
Quim Zé tinha a energia típica de
sua idade, compartilhada com sua melhor amiga, uma vizinha da mesma escola.
Caminhando juntos todas as manhãs, eles trocavam ideias sobre livros, animes e
desenhos animados. Embora Quim Zé fosse fascinado por animes e ela preferisse
leituras mais densas, os dois encontravam um equilíbrio.
Certa manhã, enquanto caminhavam
perto da estação de comboios, a amiga parou de repente.
— O que estamos a fazer aqui?
— perguntou Quim Zé, confuso.
Ela sorriu, com uma
centelha de desafio no olhar.
— Vem comigo.
Antes que ele pudesse reagir, ela
correu em direção a estação de Oliveira do Bairro. Com agilidade, atravessou
para o outro lado e virou-se para ele.
— Anda, Quim Zé!
Ele hesitou.
— O meu pai não me deixa
andar por aqui.
— És tão certinho. Desobedece as
regras uma vez na vida!
Quim Zé olhou para os carris,
hesitante.
— Não sei não...
Antes que pudesse decidir, um
comboio passou com velocidade impressionante, cortando o ar com um rugido
metálico. Quim Zé ficou paralisado, maravilhado com a imponência da máquina que
seguia em direção a Coimbra.
Ele observou, fascinado, mas
aliviado por não ter cedido à pressão da amiga. Afinal, ser certinho tinha suas
vantagens, e ele sabia que seu pai ficaria orgulhoso de sua escolha.
No fim do dia, quando André olhava
para a família reunida, percebeu o quanto cada momento, desde o mosteiro de
Nara até aquele instante, havia moldado sua jornada. A música da mulher
indiana, os ensinamentos de Buda e até as pequenas aventuras de Quim Zé formavam as peças de uma vida cheia
de significado.
Ele sorriu, grato por estar onde
estava: em casa, finalmente.
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