Mais um capitulo do conto "Siddartha Gautama".

 

        As ruas de Aveiro estavam movimentadas naquele dia, cheias de uma energia vibrante e caótica. Metade das pessoas eram turistas, e, para André, isso era uma vantagem. Como alguém no espectro do autismo, especificamente com Asperger, ele sentia alívio ao estar em meio a desconhecidos. Não havia a pressão social de cumprimentar ou reconhecer rostos familiares. Ele podia ser apenas mais um visitante explorando a cidade.

        No entanto, essa multidão tornava a tarefa de encontrar um lugar para estacionar um desafio considerável. Quando André pediu uma das carrinhas a Zé, este, naturalmente, ficou curioso.
       — Sabes dirigir? — perguntou Zé com a sobrancelha arqueada.

André deu de ombros, um leve sorriso nos lábios.
        — Aprendi nos tempos livres no mosteiro de Nara. Tenho uma carteira de motorista japonesa.

       Finalmente, após várias voltas, André encontrou um espaço para estacionar. Com calma, desligou a carrinha, recolheu as chaves e o telemóvel antes de sair.
      — Se tiver algum problema, entre no primeiro café e ligue para mim ou para o Hugo. Iremos buscá-lo imediatamente — disse Zé, com a voz carregada de preocupação.

       André sorriu diante do cuidado exagerado de Zé.
         — Vai ficar tudo bem.

        Ele seguiu seu caminho, determinado. Sua missão era encontrar um mosteiro budista em meio à cidade, um local onde seu amigo monge Naruhito Kaito vivia. Havia prometido visitá-lo assim que retornasse a Portugal, e cumpriria essa promessa.

         Com a ajuda do Google Maps, André adentrou um beco estreito e avistou o mosteiro, cuja arquitetura em estilo japonês destoava, mas ao mesmo tempo enriquecia o cenário de Aveiro. Fascinado, tirou uma foto do lugar e enviou para Zé e Hugo. Na entrada, Naruhito Kaito conversava com turistas portugueses em um português impecável.

        — Kon'nichiwa, Naruhito sensei. — cumprimentou André, com uma leve vénia.

O mestre respondeu no mesmo idioma, sorrindo calorosamente:
        — Watashi no yūjin Andore, birasu e yōkoso.

André continuou em japonês, esforçando-se para ser claro:
       — Nara de yakusoku shita anata no shūdōin ni ai ni kimashita.
Depois, sentiu-se constrangido e trocou para o português.
       — Desculpe pelo meu japonês rudimentar. Estou apenas começando a aprender.

      Naruhito soltou uma risada genuína.
      — Japonês rudimentar? Você fala melhor do que eu, e eu sou japonês!

        — Dōmo arigatō, masutā — respondeu André, fazendo outra vénia budista. — Eu me refugio em Buda.

        O mestre retribuiu o gesto.
         — Eu me refugio em Buda. Mas vamos falar em português. Você é um ás no japonês, mas eu preciso aprender sua língua.

         Dentro do mosteiro, o ambiente parecia saído de outra era. Inspirado nos templos Bushido da época do Edo, cada detalhe exalava tradição e reverência. André tirava fotos de tudo, enviando cada registro para Zé e Hugo. Quando chegaram ao salão principal, André parou diante de uma réplica em bronze do grande Buda de Nara.

        Ele fez uma vénia profunda e ajoelhou-se, silencioso, para orar com o terço budista que trazia consigo. Naruhito respeitou o momento, permanecendo ao seu lado, imóvel. O silêncio entre eles não era vazio, mas carregado de significado.

         Depois de alguns minutos, André levantou-se e olhou para o mestre.
         — Estou muito melhor, mestre.

        O sorriso tranquilo de Naruhito era uma confirmação de que ele entendia.

          Ao regressar para casa, André manobrou a carrinha com cuidado até a garagem, notando o olhar surpreso de Zé ao vê-lo chegar sem contratempos.
       — Estás a ficar um verdadeiro piloto, hein? — disse Zé, com uma ponta de alívio.

        Mais tarde, enquanto relatava sua visita ao mosteiro para Hugo, que estava sentado no sofá com o portátil no colo, André mencionou algo que Naruhito havia lhe proposto.
        — O mestre perguntou se eu gostaria de me juntar ao templo como seu Bikkshu, mesmo já tendo me tornado monge.

       Zé, entrando na sala com as mãos ainda húmidas do avental, não perdeu a oportunidade de brincar.
        — Tu estás no conselho, mas não lhe damos o título de mestre! — exclamou, imitando a voz do Mestre Yoda de Star Wars.

       A cena descontraiu o ambiente, arrancando risos de todos.
        — A comida está pronta — completou Zé.

         Com isso, Hugo fechou o portátil , e todos seguiram para a cozinha. Na mesa, Quim Zé já estava sentado, os olhos fixos no prato fumegante à sua frente.
          — Espera pelos outros, meu menino — repreendeu Zé, lançando-lhe um olhar firme.

          Quim Zé murmurou algo, mas conteve-se, esperando pacientemente. Quando todos se sentaram, Zé ajeitou-se e pegou os talheres.
        — Podem começar.

         O som dos talheres preenchendo os pratos e as conversas descontraídas trouxeram um sentimento de normalidade que, para     André, era valioso. Mais do que uma refeição, era uma partilha, um momento de conexão genuína, tão essencial quanto qualquer ensinamento aprendido em templos distantes.


                                    

 

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