Autscape - um congresso de autistas para autistas
O Autscape era um congresso singular, voltado para adultos com síndrome de
Asperger, organizado por e para pessoas no espectro. Realizado entre 29 de
julho e 1 de agosto, numa aldeia inglesa que pulsava em torno de uma universidade,
o evento atraía participantes para uma experiência de partilha e reflexão. A
aldeia, quase uma extensão do campus, parecia adormecer fora do ano letivo, com
os seus habitantes – empregados da universidade – a alugarem as casas para os
congressistas, numa simbiose prática e acolhedora.
Chegámos, eu e o Herculano, com a expectativa de mergulhar naquele ambiente
único. Mas, logo à chegada, um obstáculo: o Herculano, que não é Aspie, foi
barrado. A organização questionava se ele podia permanecer, já que o evento era
exclusivo para pessoas no espectro. Marcou-se uma reunião para as 21 horas,
naquela noite, para decidir o seu destino. Enquanto esperávamos, explorámos a
aldeia. As ruas estreitas, as casas de pedra e o ar de tranquilidade evocavam
um cenário quase literário. Num momento de encantamento, deparei-me com uma
cabana que me fez sorrir – parecia saída diretamente de Hogwarts, como a do
Hagrid.
À noite, dirigimo-nos à reunião, numa casa pequena reservada para esses
encontros. Kelly e Martin, os responsáveis pelo Autscape, conduziram a
discussão. O Herculano, com paciência, explicou em inglês que eu não podia
ficar sozinho no congresso. Após um debate que pareceu interminável, a
autorização foi concedida. Aliviados, fomos guiados por Martin até ao nosso
quarto, um espaço simples com duas camas. Herculano escolheu a mais recatada,
escondida num canto, enquanto eu fiquei com a que dava para a porta.
Os dias começavam cedo, com o burburinho nos corredores a servir de
despertador. O pequeno-almoço, à inglesa, era um ritual que eu abraçava com
entusiasmo – ovos, bacon, feijões, tudo desaparecia do meu prato. As sessões do
congresso variavam entre momentos de introspeção profunda e outros que,
confesso, me entediavam. Nessas alturas, eu e o Herculano escapávamos para
explorar a aldeia. À noite, o destino era o pub local, o “Cavalo Negro”, onde
ele saboreava uma cerveja e eu, fiel à minha Coca-Cola, observava o ambiente.
Num dos dias, uma sessão particularmente monótona, conduzida por uma
Asperger que sugeria “falar para a mão” quando nos sentíssemos mal, levou-nos a
uma aventura maior. Decidimos caminhar até a cidade vizinha. Mandámos postais
para amigos, entrámos num pub e, por momentos, esquecemo-nos do congresso. De
volta à aldeia, o jantar era outro momento de deleite – eu devorava tudo, como
se cada refeição fosse a última.
Nem tudo era harmonioso. Durante algumas reuniões, quando Herculano ousava
dar uma opinião, Kelly lançava-lhe olhares de desaprovação. Eu, por minha vez,
tentava integrar-me com o meu inglês hesitante. Todas as manhãs, cumprimentava
os outros com um “Good morning” atrapalhado, o que levou os participantes a
apelidarem-me, com humor, de “polícia do Allo, Allo”. O apelido pegou, e eu
aceitei-o com um sorriso.
Martin, mais aberto, começou a juntar-se a nós nas refeições, curioso sobre
Portugal, especialmente o Porto. Prometemos levá-lo a conhecer o nosso país,
numa conversa que fluía com facilidade. Uma noite, na sala de convívio,
assistimos a Bolo de Neve, um filme sobre um homem que, após um acidente,
descobre que a mãe da jovem a quem deu boleia é autista. A discussão que se
seguiu girou em torno de uma questão delicada: pode uma pessoa com autismo ter
um filho? Quais seriam as consequências? Falei no meu inglês rudimentar, e os
risos voltaram – “Polícia do Allo, Allo”, diziam, entre gargalhadas.
Por vezes, as minhas piadas com o Herculano, que o faziam rir sem querer,
irritavam alguns participantes. Mas, aos poucos, fomos encontrando o nosso
lugar. No último dia, a despedida foi agridoce. Os Asperger abraçaram-se,
partilharam promessas de reencontro, e Kelly, num gesto de trégua, fez as pazes
com o Herculano.
Deixámos a aldeia e rumámos a Liverpool, onde realizei um sonho: visitar o
Cavern Club, o lendário pub onde os Beatles tocaram pela primeira vez. A cidade
vibrava, e eu sentia-me vivo, carregando as memórias de um congresso que, com
os seus desafios e momentos de conexão, me marcou profundamente.
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