Mais um capitulo do conto "Siddartha Gautama".
Zé tinha acabado de deixar o Quim
Zé na escola. Estava no escritório, imerso em um livro que parecia mais uma dor
de cabeça do que um projeto, quando ouviu batidas na porta. Do andar de cima,
respondeu:
— Já vou, é só um segundo!
Descendo as escadas, abriu a porta da
rua e deparou-se com um homem alto, corpulento como ele, de barba e cabelo
preto claro. Usava óculos redondos que lembravam Harry Potter e vestia uma
calça de sarja verde combinada com uma camiseta que dizia: "Eu não
sou malcriado, eu sou Asperger". O homem sorria para Zé como se fossem
velhos conhecidos.
— Desculpe-me, mas não me lembro de
você. — Zé disse, hesitante. Depois, quase como uma desculpa, acrescentou: —
Deve ser por causa do Covid.
O visitante não se abalou.
— Zé, sou eu, o André. André
Vilaça.
O nome bateu como um trovão. Zé ficou
petrificado, encarando o visitante. André, por sua vez, não hesitou: abriu os
braços e o abraçou com força. Um gesto inesperado, especialmente vindo de
alguém que, como ele sabia, era Asperger e costumava evitar toques físicos.
— Ah... desculpa, Zé. — André murmurou,
envergonhado. — Por favor, perdoa-me.
Logo, estavam sentados à mesa da
cozinha. O silêncio entre eles era espesso. Zé queria respostas, e André
parecia ansioso para explicar, mas, curiosamente, os dois começaram a falar ao
mesmo tempo. Zé ergueu a mão, sinalizando cortesia:
— Pode falar primeiro.
— Não, fala tu primeiro, irmão. —
respondeu André com a mesma educação.
O termo “irmão” incomodou Zé.
— Podes parar de me chamar assim?
André pediu desculpas e, tentando aliviar
o ambiente, comentou:
— Sempre gostei da tua casa, Zé. É
muito bonita e acolhedora.
Antes que a conversa pudesse continuar,
ouviram a porta abrir. Quim Zé voltava da escola, pontual às três da tarde. Ele
entrou cumprimentando o pai, mas, ao notar André, parou, intrigado:
— Nós temos visitas?
Zé respondeu de forma hesitante:
— Ei, vê como falas...
Quim Zé tirou o chapéu e a mochila,
dobrou o casaco e colocou tudo no lugar antes de se aproximar, educado, e
dirigir-se ao estranho:
— Olá!
— Sim, olá! — respondeu André com igual
gentileza.
O menino arregalou os olhos, surpreso:
— Meu Deus… um estrangeiro de
verdade!
Zé franziu a testa.
— Hã?!
André sorriu, paciente, e explicou:
— Eu não sou estrangeiro. Também
sou português.
A curiosidade infantil não se conteve.
— Pai, quem é ele?
O olhar de Zé endureceu. Inspirou fundo
antes de responder:
— Ele, meu filho, é o teu
verdadeiro pai.
Quim Zé piscou, confuso, mas não perdeu o
tom inquisitivo:
— Posso te perguntar uma coisa, meu
verdadeiro pai?
— Claro, podes. — André respondeu,
tentando parecer relaxado.
— Por que não consegues olhar nos meus
olhos? O chão não é assim tão interessante.
— Quim Zé! — ralhou Zé.
Mas André não se ofendeu.
— Não faz mal. Eu não consigo olhar
nos olhos de ninguém porque sou Asperger.
O menino pareceu compreender
rapidamente.
— Um Asperger como o primo Matias?
— É complicado, mas, sim. É uma
dificuldade que tenho e que afeta minha comunicação.
O menino ficou pensativo por um momento,
depois confessou:
— Eu não cheguei a conhecer a
minha mãe. Era muito pequenino quando ela morreu.
André tirou a carteira do bolso.
— Eu tenho uma foto dela… queres
vê-la?
Os olhos do menino brilharam.
— Quero, quero!
André mostrou a foto, e Quim Zé a
examinou com cuidado. Sua expressão iluminou-se:
— Ela era mesmo bonita, pai. Olha,
ela era mesmo bonita!
— Sim, eu sei.
Enquanto o menino admirava a imagem,
André foi invadido por lembranças dolorosas. O terrível acidente em Nara, no
Japão, voltou à sua mente como um fantasma, mas ele engoliu as palavras,
mantendo a calma na frente do menino.
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