Prof. Paulo um espírito livre, um eco do Professor Keating de O Clube dos Poetas Mortos
Aos 18 anos, André — ou o narrador que
aqui se revela — cruzou os portões da Escola Profissional da Vilarinha, no
Porto, carregando nos braços um maço de desenhos e no peito a coincidência
feliz de um dia especial: o nascimento de seu segundo sobrinho, David. Era um
jovem alto, barbudo, com uma paixão desmedida por Star Wars — Darth Vader e
Darth Maul dominavam suas folhas, inspirados por idas repetidas ao cinema para
rever o duelo final do Episódio I —, além de traços vibrantes do Cartoon
Network e de Dragon Ball Z. Gogeta em Super Guerreiro, com a legenda em inglês
“A lenda vive”, era o tipo de detalhe que ele rabiscava com orgulho. Por
conselho da mãe, levou tudo aquilo à escola, sonhando que algum psicólogo ou
técnico visse ali um talento digno de um emprego. Mas a sala de apresentação, apertada
e cheia de pais, utentes e profissionais, não lhe deu o palco que esperava.
Ninguém olhou seus desenhos. Desanimado, ele já se preparava para engolir a
decepção quando o Professor Paulo, um homem de presença singular, pediu para
ver suas criações. O entusiasmo genuíno do professor — “Continua com o bom
trabalho” — acendeu nele uma chama tímida, mas real.
No dia seguinte, André pegou o
autocarro sozinho, passou por uma rua perto do Parque da Cidade e chegou à
Vilarinha. Enquanto os colegas se isolavam com fones de ouvido, ele se sentou
num canto e começou a escrever Fenália, a coragem é imortal — um livro que mais
tarde publicaria pela Euedito. Foi ali que o Prof. Paulo se tornou seu guia.
Diferente dos técnicos rígidos, Paulo era um espírito livre, um eco do
Professor Keating de O Clube dos Poetas Mortos, interpretado por Robin
Williams. Ensinou-lhe trocos, orientou-o na escolha de uma profissão e viu
potencial onde outros passavam indiferentes. André escolheu ser empregado de
canil — algo familiar, já que limpava o do irmão em casa —, mas as semanas na
escola o levaram por caminhos inesperados: carpintaria, onde se saiu bem;
pintura, onde sua parede “estilo Picasso” irritou um técnico baixinho; e pastelaria,
onde uma senhora gentil, da idade de sua mãe, o guiou na arte dos bolos. Foi na
cozinha que conheceu Carina, uma jovem bonita de sua idade, que o salvou de
erros no bolo de laranja. O bolo, dividido com o Prof. Paulo, rendeu risadas
quando o professor fingiu engasgar de brincadeira.
Mas foi na jardinagem que André
encontrou seu lugar, ao lado de Paulo. Numa aula descontraída, com a trilha de
Blade Runner tocando no gabinete — cortesia de Vangelis —, ele se apaixonou
pelo filme e correu ao videoclube para alugá-lo. Paulo, com seu jeito
excêntrico, o apelidou de “Matrix” por sua obsessão pelo filme homônimo, cujas
falas ele recitava de cor. “Hello, teacher”, dizia em inglês, e Paulo
respondia, corrigindo-o com paciência. Aquele homem era mais que um professor:
adorava mistérios, falava de duendes na estufa e incentivava André a perseguir
suas paixões, mesmo que isso irritasse as psicólogas da escola. Entre piadas,
conversas em inglês e trocas sobre filmes como O Sexto Sentido — que Paulo
destrinchou sem medo de spoilers —, André se tornou o “palhaço da turma”, amado
por sua energia leve.
Nas últimas semanas, ele escolheu
jardinagem e pastelaria, mas logo abandonou a cozinha. Sentia falta do ar
livre, das estufas, de Paulo. Com coragem, pediu à “Big Boss” Dra. Laurentina
para voltar à jardinagem. Ela cedeu, e ele correu para as estufas, gritando em
inglês: “I’m back!”. Foram dias mágicos: jogava cartas de Pokémon com os mais
novos — um barbudo de camiseta XL do Pikachu —, escrevia contos de Fenália que
Paulo lia com interesse (diferente do psicólogo que dormia nas sessões) e
falava em inglês como se fosse natural. Mas nem tudo era harmonia. Um colega
problemático, que Carina admirava, desafiava Paulo com insultos. André o
defendeu, mas recuou diante da ameaça de um soco.
No último dia, sob o sol da tarde, ele
e Paulo cantaram músicas de Música no Coração. “Onde vais passar a Páscoa,
Matrix?”, perguntou o professor. “Paredes, com meu irmão”, respondeu André. Por
coincidência, Paulo era de lá, filho de um casal que vivia acima de uma loja de
bicicletas. A despedida veio com um abraço forte — “Goodbye, Matrix” —, e André
partiu em silêncio. Escreveu cartas sem resposta e, tempos depois, decidiu
procurá-lo. Essa busca, porém, fica para outra história.
Paulo foi mais que um mestre: foi o
homem que acreditou nos sonhos de André, que o chamou de “Matrix” e o fez
sentir que sua vida podia, sim, ser extraordinária.
André Vilaça
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