Mais um capitulo do conto "Siddartha Gautama".

 

A noite avançava devagar, e Zé, deitado na penumbra do quarto, não conseguia se entregar ao sono. O pequeno Quim Zé dormia profundamente ao seu lado, o braço miúdo jogado sobre o peito do pai como um peso leve, mas cheio de significado. Hugo, na cama ao lado, ressonava baixinho, alheio à vigília de Zé.

         Por volta das cinco da manhã, exausto de lutar contra a insônia, Zé desistiu. Moveu-se com cuidado para não acordar o filho e levantou-se. Calçando as pantufas, caminhou até o escritório. O espaço era pequeno, mas acolhedor, iluminado apenas pela luz azulada do portátil. Ligou o aparelho, digitou a senha e esperou a inicialização.

         A primeira imagem que surgiu na tela foi uma fotografia antiga: ele, Hugo e André no aquaparque, despreocupados, os rostos iluminados por sorrisos largos. O coração de Zé apertou de leve. Como éramos felizes..., pensou, permitindo que a nostalgia lhe trouxesse um sorriso.

         Zé navegou por pastas de fotos e encontrou um arquivo nomeado Casamento do André 2024. Ao clicar, as imagens o transportaram para aquele dia. Ele se lembrou do altar budista na Boavista, no Porto, decorado com simplicidade, mas repleto de significado. Uma das fotos mostrava Hugo tirando uma selfie com todos os convidados, seu sorriso tão grande que parecia ocupar toda a imagem.

          Zé clicou em um vídeo. Com o volume baixo, assistiu ao momento em que estava ao lado de André, junto ao altar. O amigo, visivelmente nervoso, tentava parecer calmo.
         — Estás prestes a casar, não a enfrentar a guilhotina — brincou Zé, tentando aliviar a tensão.

André sorriu nervoso.
       — Eu sei...

        Hugo, que filmava, interveio:
        — Digam algo para a câmera. Algo para as futuras gerações!

        Zé, sempre pronto para uma piada, lançou:
       — Falando em guilhotina, quais reis famosos perderam a cabeça nela e em que ano?

        — Caramba, Zé! Nada de aulas de história agora! — reclamou Hugo, redirecionando a câmera para André, que deu de ombros e respondeu:
       — É como ter borboletas no estômago.

        O vídeo terminou, mas Zé permaneceu imóvel, o olhar preso à tela. O peso da ausência de André parecia encher o ambiente. Ele clicou em outro vídeo e viu uma cena diferente: ele mesmo segurando o pequeno Quim Zé no batismo. No clipe, anunciava alto o nome completo do bebê, arrancando risos da congregação.

          Zé fechou o portátil, sentindo o impacto daquelas lembranças.   Voltou-se para o presente e para a responsabilidade que carregava.    Quim Zé era seu legado agora, uma ponte entre o passado e o futuro.

        Um som suave o tirou de seus pensamentos. Era a voz sonolenta de Quim Zé.
       — Pai, o que estás a fazer no escritório?

       O menino entrou, esfregando os olhos. Sem dizer mais nada, subiu no colo de Zé, que sorriu e respondeu:
         — Estou a ver fotos do teu pai.

         Quim Zé apontou para o ecrã, curioso:
          — Quem é aquele gordo ao lado do pai André e do tio Hugo?

         Zé fez uma careta exagerada.
        — Como assim, quem é aquele? Sou eu, é claro!

         Os dois riram juntos antes de se abraçarem. Zé pegou o menino no colo e o levou de volta ao quarto. Lá, acomodaram-se novamente na cama, tentando roubar mais algumas horas de descanso.

          Quando a manhã finalmente chegou, os raios de sol invadiram o quarto pelas frestas da cortina. Zé abriu os olhos, pegou o telemóvel e notou que eram oito horas. Ele sorriu. Era raro conseguir dormir até tão tarde.

        — Que horas são, Zé? — murmurou Hugo, ainda enfiado nos cobertores.

       — Volta a dormir. Ainda são oito.

         Depois de um banho revigorante, Zé foi para a cozinha e começou a preparar o pequeno-almoço. Não demorou muito para ouvir os passos leves de Quim Zé descendo as escadas. O menino entrou correndo e sentou-se à mesa, onde Zé colocou uma tigela de flocos de cereais com leite diante dele.

       — Come devagar, e o tio Hugo? — perguntou Zé.

       — Está a dormir. Tentei acordá-lo, mas ele virou as costas para mim.

Zé riu, balançando a cabeça.
        — Queres ir às compras comigo?

        — Sim! — respondeu o menino, com entusiasmo.

        Passaram a manhã fora, comprando mantimentos. Quando voltaram para casa, Hugo estava acordado, sentado no sofá ao lado do pai de Zé, ambos entretidos com a televisão.

         — Já tomaste o pequeno-almoço? — perguntou Zé, colocando as compras na cozinha.

        — Sim, já comi. Se dependesse de ti, morreria de fome — respondeu Hugo, com um sorriso zombeteiro.

        Ao meio-dia, Zé preparou o almoço com a ajuda de Quim Zé. Sentaram-se todos juntos à mesa, conversando e rindo.

       Quando chegou a hora de partir, Hugo abraçou Quim Zé com força.
      — Prometes voltar? — perguntou o menino, sério.

      — Claro que sim. Um dia, prometo que vais passar o dia na minha casa. A tia Rosa tem saudades tuas.

       Quim Zé sorriu e esticou o rosto para o habitual “beijinho à esquimó”. Hugo respondeu tocando narizes com ele antes de se despedir.

        Após fechar a porta, Zé olhou para o filho e perguntou:
      — Queres uma goma? Estou com vontade de comer uma.

      — Sim! — respondeu o menino, pulando de alegria.

          A tarde seguiu tranquila, preenchida por pequenas atividades que, para Zé e Quim Zé, eram o mundo inteiro. O peso do passado sempre estaria ali, mas naquele instante, entre risadas e gomas compartilhadas, o amor e a presença eram suficientes para preencher qualquer vazio.



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